Por Ben Davis, traduzido por Bruno Trochmann
Ben Davis é um crítico de arte estadunidense. Em 2009 ele publicou o seguinte texto em forma de panfleto para acompanhar sua fala sobre o tema de classe em uma exibição na galeria Winkleman, em Nova Iorque. Em 2013 o panfleto foi reeditado como parte do livro com o mesmo nome, onde Davis junta outros textos e ensaios sobre o tema. A seguinte tradução foi retirada do livro.
1.0 A classe é uma questão de importância fundamental para a arte.
1.1 Na medida em que a arte faz parte e não é independente da sociedade, e a sociedade é marcada por divisões de classe, estas também afetarão o funcionamento e o caráter da esfera de as artes visuais.
1.2 Como diferentes classes têm interesses diferentes e a “arte” é afetada por esses interesses diferentes, a arte tem valores diferentes, dependendo de qual ponto de vista da classe é abordado.
1.3 Compreender a arte significa entender as relações de classe fora da esfera das artes visuais e como elas afetam essa esfera, bem como entender as relações de classe dentro da esfera das próprias artes visuais
1.4 Em geral, a ideia do “mundo da arte” serve como uma maneira de evitar a consideração deste conjunto de relações.
1.5 A noção de um “mundo da arte” implica uma esfera separada, ou que é separada, das questões do mundo não artístico (e assim a separa das questões de classe fora dessa esfera).
1.6 A noção de um “mundo da arte” também visualiza a esfera das artes visuais não como um conjunto de interesses conflitantes, mas como uma confluência de profissionais com um interesse comum: “arte” (e assim nega as relações de classe dentro dessa esfera).
1.7 A ansiedade sobre a classe na esfera das artes visuais se manifesta nas críticas ao “mercado de arte”; no entanto, uma crítica ao mercado da arte não é a mesma coisa que uma crítica de classe na esfera das artes visuais. A classe é uma questão mais fundamental e determinada do que o mercado.
1.8 O “mercado de arte” é abordado de maneira diferente por diferentes classes; discutir o mercado de arte na ausência de entendimento dos interesses de classe serve para obscurecer as forças reais que determinam a situação da arte.
1.9 Como a classe é uma questão fundamental para a arte, a arte não pode ter uma ideia clara de sua própria natureza, a menos que tenha uma ideia clara dos interesses de diferentes classes.
2.0 Hoje, a classe dominante, que é capitalista, domina a esfera das artes visuais.
2.1 Faz parte da definição de classe dominante que esta controla os recursos materiais da sociedade.
2.2 As ideologias dominantes da sociedade, que servem para reproduzir essa situação material, também representam os interesses da classe dominante.
2.3 Os valores dominantes dados à arte, portanto, serão aqueles que atendem aos interesses da atual classe dominante.
2.4 Concretamente, no âmbito das artes visuais contemporâneas, os agentes cujos interesses determinam os valores dominantes da arte são: grandes corporações, incluindo casas de leilão e colecionadores corporativos; investidores de arte, colecionadores particulares e clientes; e curadores e administradores de grandes instituições culturais e universidades.
2.5 Um papel da arte, portanto, é como um bem de luxo, cujo refinamento técnico ou prestígio intelectual indica status social superior.
2.6 Outro papel da arte é servir como instrumento financeiro ou repositório de valor negociável.
2.7 Outro papel da arte é como uma forma de “retribuir” à comunidade, para anular ganhos ilícitos.
2.8 Outro papel da arte é como uma válvula de escape simbólica de impulsos radicais, para servir como um lugar para isolar e conter a energia social que é contrária à ideologia dominante.
2.9 Um papel final para a arte é a autorreplicação da ideologia da classe dominante sobre a própria arte – os valores dominantes dados à arte servem não apenas para representar diretamente os valores da classe dominante, mas também para subjugar, dentro da esfera das artes, outras possíveis valores da arte.
3.0 Embora a ideologia da classe dominante seja finalmente dominante na esfera das artes, o caráter predominante dessa esfera é a classe média.
3.1 “Classe média” neste contexto não indica nível de renda. Indica um modo de se relacionar com o trabalho e os meios de produção. “Classe média” aqui indica ter um relacionamento individual e autodirigido com a produção, em vez de administrar e maximizar o lucro produzido pelo trabalho de outras pessoas (classe capitalista) ou vender a força de trabalho de alguém (classe trabalhadora).
3.2 A posição do artista profissional é caracteristicamente de classe média em relação ao trabalho: o sonho de ser artista é o sonho de ganhar a vida com os produtos do próprio trabalho mental ou físico, ao mesmo tempo em que é capaz de controlar e se identificar com esse trabalho.
3.3 Uma característica distintiva da esfera das artes visuais é, portanto, que é uma esfera na qual a ideologia da classe dominante domina e, no entanto, é permitido que ela tenha um caráter incomum de classe média (na verdade, é por definição classe média – o “mundo da arte” é definido como a esfera que comercializa produtos individuais da criatividade, e não a criatividade produzida em massa).
3.4 Em parte, o caráter de classe média das artes visuais se refere a 2.5-2.8 acima. Na perspectiva da classe dominante, é benéfico promover o exemplo do trabalho criativo da classe média por várias razões.
3.5 No entanto, a perspectiva da classe média sobre o valor e o papel da arte não é idêntica à da classe dominante; os artistas têm sua própria maneira de se relacionar com seu trabalho e, consequentemente, com seu próprio valor para a “arte”.
3.6 O valor da arte da classe média é duplo: por um lado, a “arte” é identificada como uma profissão, como um meio desejável de se sustentar financeiramente.
3.7 Por outro lado, “arte” é identificada como autoexpressão, como uma manifestação da individualidade criativa (seja expressa através de um estilo específico de técnica ou como um programa intelectual original; debates da teoria da arte sobre a importância da mão do artista ou “estúdio” na produção versus produção “pós-estúdio” substitui esse sentido mais fundamental e estrutural em que a esfera das artes visuais preserva a individualidade).
3.8 Duas contradições permanentes dominam, portanto, a esfera das artes visuais. A primeira contradição está entre o fato de as artes visuais serem dominadas por valores da classe dominante, mas definidas por seu caráter de classe média.
3.9 A segunda contradição é interna à definição de classe média de “arte”, que é dividida entre noções de arte como profissão e como vocação e, portanto, entra em contradição consigo mesma a todo momento em que o que um artista deseja expressar se opõe com as demandas de ganhar a vida (em uma situação em que uma minoria domina a maioria dos recursos da sociedade, isso geralmente ocorre).
4.0 A esfera das artes visuais tem relações fracas com a classe trabalhadora.
4.1 A classe trabalhadora aqui é definida como composta pelos trabalhadores que são obrigados a vender sua força de trabalho como uma mercadoria para ganhar a vida e, portanto, não têm participação individual em seu trabalho.
4.2 Existem muitos links para a classe trabalhadora nas artes visuais: trabalhadores de galerias, fabricantes anônimos de componentes artísticos, trabalhadores de museus não profissionais e assim por diante. Muitos artistas são empregados dessa forma, por fora do “mundo da arte” – o sonho de ter realizado plenamente o status de classe média permanece uma aspiração para a maioria das pessoas que se identificam como “artistas”.
4.3 Ainda assim, a forma de trabalho no cerne da esfera das artes visuais, a produção de obras de arte, permanece na classe média – muito mais do que na maioria das outras chamadas indústrias criativas.
4.4 Uma consequência desse caráter predominantemente de classe média é a abordagem das artes visuais para lidar com as contradições sociais e econômicas que ela enfrenta. Uma relação individualizada com o trabalho significa que os agentes da classe média tendem a conceber sua capacidade de alcançar objetivos políticos em termos individualistas, com seu poder social derivado da capacidade intelectual, personalidade ou retórica (é essa realidade que está por trás do deslocamento da discussão sobre as contradições da arte para considerações do “mercado” – um construto no qual indivíduos livres entram em relações econômicas entre si – do que considerações de “classe”, um conceito que implica interesses opostos e fundamentais que vão além do indivíduo)
4.5 Por outro lado, porque ser membro da classe trabalhadora envolve ser tratado como uma fonte abstrata e intercambiável de trabalho, a capacidade da classe trabalhadora de alcançar seus objetivos depende muito mais da sua capacidade de organização coletiva. Essa é uma forma de resistência difícil de ser alcançada no âmbito das artes (toda a conversa sobre uma “greve de artistas” permanece satírica fora de uma situação como a do apoio artístico do governo dos Estados Unidos na década de 1930, onde artistas são empregados como um bloco).
4.6 Como a estrutura dominante da sociedade é capitalista – isto é, a exploração do trabalho assalariado para maximizar o lucro – a posição da classe trabalhadora está realmente mais próxima do núcleo do funcionamento da sociedade do que a da classe média; trabalhadores de classe média, pela própria natureza de sua semi-independência, têm apenas a capacidade de encerrar sua própria produção, enquanto uma classe trabalhadora organizada pode afetar diretamente os interesses da classe dominante.
4.7 A natureza específica da classe trabalhadora sugere sua própria relação com o conceito de “arte”, distinta das noções capitalistas ou da classe média.
4.8 Por um lado, um valor de classe trabalhadora da arte é determinado pela realidade das “indústrias criativas”, nas quais são empregados trabalhadores criativos que têm uma relação da classe trabalhadora com os produtos de sua expressão; isto é, eles produzem criativamente produtos não como uma expressão de sua individualidade, mas simplesmente como uma tarefa. Visto desse ângulo, a “arte” é desmistificada – não é uma forma de expressão única e exaltada, mas apenas mais um processo humano que é objeto de trabalho.
4.9 Por outro lado, na medida em que o trabalho da classe trabalhadora é controlado de cima, o ideal da “arte” também pode representar uma forma de trabalho que se opõe às demandas do trabalho, como expressão livremente determinada, seja privada ou política. Visto desse ângulo, a arte é desprofissionalizada e, nesse sentido, é realmente mais “livre” do que o ideal da classe média de expressão pessoal como carreira.
5.0 A ideia de “arte” tem um senso humano básico e geral sobre o qual nenhuma profissão ou classe específica detêm o monopólio.
5.1 “Arte”, concebida como expressão criativa em geral, pode ser vista como representando uma função tão básica quanto o exercício físico ou o diálogo e uma necessidade apenas um pouco menos fundamental do que comer ou sexo (“um pouco menos fundamental” porque a questão da expressão criativa surge após uma sobrevivência simples – você deve primeiro garantir a comida antes de pensar em culinária).
5.2 Concebida dessa maneira, toda atividade humana tem um componente artístico, um aspecto sob o qual pode ser vista como “criativa”.
5.3 No entanto, em qualquer situação histórica, algumas formas de trabalho criativo são valorizadas em detrimento de outras; alguns tipos de trabalho são considerados mais exaltados, outros menos.
5.4 Qual das várias formas de trabalho são consideradas verdadeiramente “artísticas” por si só é decidido pela atual classe dominante [2.2], que preside as relações dominantes de produção e, por esse meio, exerce influência sobre o caráter do “trabalho” não-artístico e o valor da “arte”, bem como as interseções entre eles.
5.5 No entanto, o impulso artístico entendido de forma geral não desaparece simplesmente diante de suas determinações históricas específicas; na medida em que exista um sentido básico da arte, como a expressão criativa existe, os seres humanos também têm um certo investimento criativo cotidiano em seu trabalho, uma vez que todo trabalho é a transformação criativa da matéria ou da vida.
5.6 Por outro lado, na medida em que o impulso generalizado para a criatividade é limitado e frustrado pelas demandas de um cenário histórico específico, existe o impulso de escapar a elas e expressar livremente fora delas.
5.7 Como “arte”, no sentido da expressão criativa geral, é um impulso básico, nenhuma classe tem o monopólio; no entanto, as visões de mundo orgânicas de diferentes classes podem estar mais próximas ou mais longe de expressar as possibilidades de sua realização geral.
5.8 As visões de mundo da classe dominante e da classe média impedem a ideia de “arte” como expressão humana geral: a classe dominante porque define o valor da arte de acordo com os interesses de uma minoria estreita; a classe média, porque seu interesse envolve definir a criatividade como expressão profissional, o que a restringe a especialistas em criação.
5.9 A perspectiva da classe trabalhadora, portanto, pode ser vista como refletindo a concepção contemporânea mais orgânica da expressão criativa generalizada (mesmo que as circunstâncias nem sempre permitam que essa concepção seja desenvolvida ou expressa) – “arte”, sob essa luz, é ao mesmo tempo um assunto de trabalho como qualquer outro [4.8] e oposto à alienação do processo de trabalho atual [4.9]. Portanto, é implicitamente livre de qualquer determinação profissional e comum a todos (embora esse aspecto, no atual cenário ideológico, seja frequentemente canalizado para as aspirações criativas da classe média- que podem ser vistas como um dos usos do “mundo da arte” para a classe dominante [2.8 e, a partir disso, 2.9]).
6.0 Como a arte faz parte da sociedade [1.1] e porque nenhuma profissão tem o monopólio da expressão criativa [5.0], os valores dados à arte no âmbito das artes visuais contemporâneas também serão determinados em relação à forma como a “criatividade” se manifesta em outras esferas da sociedade contemporânea.
6.1 “Arte” na linguagem comum tem um duplo significado: designa a atividade criativa em geral e representa o trabalho que circula dentro da tradição específica e conjunto de instituições das artes visuais; portanto, algo pode ser “arte” (isto é, criativo), mas não ser “Arte” (isto é, não se encaixa na esfera das artes visuais), ou algo pode ser “Arte” (isto é, pode ser facilmente classificado dentro da esfera das artes visuais) mas não ser “arte” (isto é, não ser particularmente criativo).
6.2 As artes visuais contemporânea, portanto, tem um caráter paradoxal: é uma disciplina criativa específica que se arrogou com o status de representar “criatividade” em geral (quando alguém diz que é profissionalmente um “artista”, ele geralmente tenta indicar que ele trabalha dentro de um certo conjunto de tradições e instituições e implica que seu trabalho tem um certo caráter especialmente criativo).
6.3 Essa sobreposição deriva do caráter de classe média das artes visuais contemporâneas – a perspectiva da classe média é precisamente aquela em que o investimento em criatividade em geral se sobrepõe à identidade profissional.
6.4 No entanto, de forma igualmente paradoxal, a arte visual contemporânea, em oposição a qualquer outro tipo de trabalho criativo (música, filme, atuação, design gráfico, decoração de bolos), não possui um meio específico – isto é, nenhuma forma específica de trabalho – a ele l