“Por que a Revolução na Inglaterra teve sucesso?”: uma crítica do panfleto de Guizot

Por Karl Marx, via marxists.org, traduzido por Maila Costa

Publicado originalmente em 1850 na “Nova Gazeta Renana”.


Neste panfleto, Guizot pretende mostrar porque sua política, juntamente com Luís Filipe, não deveriam ter sido derrubados em 24 de fevereiro de 1848, e como o caráter abominável dos franceses deve ser responsabilizado pelo fato de que a monarquia de julho de 1830, após uma existência de 18 anos problemáticos, desmoronou de forma tão vergonhosa e falhou em adquirir a resistência que a monarquia inglesa desfrutou desde 1688.

Ao ler este panfleto, percebe-se que mesmo as pessoas mais capazes do ancien régime, pessoas cujos talentos não se pode contestar, são levadas a tamanho estado de perplexidade pelos eventos fatais daquele fevereiro que perderam todo o entendimento da história, não compreendendo mais suas próprias ações anteriores. Em vez de perceber, com a experiência da Revolução de Fevereiro, o contexto histórico e a posição completamente diferentes que as classes ocupavam na sociedade sob a monarquia francesa de 1830 e sob a monarquia inglesa de 1688, Guizot dissolve estas diferenças com algumas frases moralistas e afirma em conclusão que a política que foi derrubada em 24 de fevereiro “era a única que poderia dominar a revolução, da mesma forma que controlou o estado”.

Especificamente formulada, a pergunta que Guizot pretende responder é: por que a sociedade burguesa na Inglaterra se desenvolveu como uma monarquia constitucional durante mais tempo do que na França? A seguinte passagem demonstra o conhecimento de Guizot sobre o curso do desenvolvimento burguês na Inglaterra:

“Sob George I e George II, a opinião pública tomou uma direção diferente: a política externa deixou de ser o principal interesse; a administração interna, a manutenção da paz, questões financeiras, coloniais e comerciais, e o desenvolvimento e a luta pelo governo parlamentar se tornaram as principais questões que ocupam o governo e o público”.

Guizot encontra no reinado de Guilherme III apenas dois pontos dignos de menção: a preservação do equilíbrio entre o parlamento e a coroa e o equilíbrio na Europa através das guerras contra Luís XIV. Sob a dinastia hanoveriana, “a opinião pública de repente toma uma direção diferente”, ninguém sabe como ou por quê. Aqui vemos como Guizot se utiliza das frases mais banais dos debates parlamentares franceses sobre a história da Inglaterra, acreditando que deste modo a tenha explicado. Da mesma forma, Guizot também imagina que quando primeiro-ministro francês, ele carregava em seus ombros a responsabilidade de preservar o equilíbrio adequado entre o parlamento e a coroa, assim como o equilíbrio da Europa. Mas na realidade, tudo que ele fez foi trocar pouco a pouco todo o estado francês e toda a sociedade francesa com os judeus da Bolsa de Paris.

Guizot não considera importante enquanto menciona que as guerras contra Luís XIV foram simplesmente uma competição destinada à destruição do poder naval e do comércio francês, que a burguesia financeira recebeu sua primeira sanção pelo estabelecimento do Banco da Inglaterra e pela instituição da dívida nacional sob Guilerme III. Nem que a burguesia manufatureira recebeu um novo impulso através da aplicação consistente de um sistema de tarifas de proteção. Somente frases políticas significam alguma coisa para ele. Ele nem sequer menciona que, sob o governo da rainha Ana, os partidos governantes puderam se manter no poder, assim como a monarquia constitucional, pela medida arbitrária de estender o mandato do parlamento para sete anos, destruindo assim qualquer influência que o povo pudesse ter sobre o governo.

Sob a dinastia hanoveriana, a Inglaterra já havia atingido um estágio de desenvolvimento onde poderia guerrear contra a França com meios modernos. A própria Inglaterra desafiou a França diretamente apenas na América e nas Índias Orientais, enquanto no continente ela se dispunha a pagar soberanos estrangeiros, como Frederico II, para travar uma guerra contra a França. E enquanto a política externa assume uma nova forma, Guizot diz: “A política externa deixou de ser o principal interesse”, sendo substituída pela “manutenção da paz”. Quanto à afirmação de que o “desenvolvimento e a luta parlamentarista tornaram-se as principais preocupações do governo e do público”, pode-se recordar os incidentes de corrupção sob o ministério de Walpole, que, de fato, se assemelham aos escândalos que se tornaram eventos diários sob Guizot.

O fato de que a Revolução Inglesa se desenvolveu com mais sucesso do que a Francesa pode ser atribuído, segundo Guizot, a dois fatores: primeiro, que a Revolução Inglesa tinha um caráter completamente religioso e, portanto, não rompeu com todas as tradições passadas; e segundo, que desde o começo não agiu destrutivamente, mas construtivamente, sendo que o parlamento defendia as antigas leis existentes contra as usurpações da coroa.

Em relação ao primeiro ponto, Guizot parece ter esquecido que a filosofia do livre pensamento, que o aterroriza na Revolução Francesa, foi importada para a França de nenhum outro país que não a Inglaterra. Seu pai era Locke, e em Shaftesbury e Bolingbroke já havia alcançado aquela forma engenhosa que mais tarde encontrou um desenvolvimento tão brilhante na França. Chegamos assim à estranha conclusão de que a mesma filosofia de livre pensamento que, segundo Guizot, destruiu a Revolução Francesa, foi um dos produtos mais essenciais da religiosa Revolução Inglesa.

Em relação ao segundo ponto, Guizot esquece completamente que a Revolução Francesa começou ainda mais conservadora do que a Inglesa. O absolutismo, particularmente como finalmente apareceu na França, foi uma inovação lá também, e foi contra essa inovação que os parlamentaristas se revoltaram para defender as velhas leis habituais da antiga monarquia. E enquanto a Revolução Francesa estava para reviver os antigos Estados Gerais, que estavam adormecidos desde Henrique IV e Luís XIII, a Revolução Inglesa, ao contrário, não mostrou nenhum elemento clássico-conservador comparável.

Segundo Guizot, o principal resultado da Revolução Inglesa foi que ela impossibilitou que o rei decidisse contra a vontade do Parlamento e da Câmara dos Comuns. Assim, para ele, toda a revolução consiste apenas nisso: que no começo ambos os lados, coroa e parlamento, ultrapassam seus limites e vão longe demais, até que finalmente encontram seu equilíbrio adequado sob Guilherme III e se neutralizam. Guizot acha supérfluo mencionar que a sujeição da coroa ao parlamento significava sujeição ao governo de uma classe. Ele também julga desnecessário lidar com o fato de que essa classe ganhou o poder necessário para finalmente tornar a coroa sua serva. Segundo ele, toda a luta entre Carlos I e o parlamento era meramente sobre prerrogativas puramente políticas. Nem uma palavra é dita sobre por que o parlamento e a classe representada por ele necessitavam dessas prerrogativas.

Guizot também não fala sobre a interferência de Charles I na livre concorrência, o que prejudicou o comércio e a indústria da Inglaterra cada vez mais; nem sobre sua dependência do Parlamento, que devido a sua contínua situação financeira se tornou maior quanto mais Charles I tentava o desafiar. Consequentemente, Guizot explica a revolução como sendo meramente devida à má vontade e ao fanatismo religioso de alguns encrenqueiros que não se contentaram com a liberdade moderada. Guizot é, tampouco, capaz de explicar a inter-relação entre o movimento religioso e o desenvolvimento da sociedade burguesa. Para ele, a república também é obra de um punhado de fanáticos ambiciosos e maliciosos. Em nenhum lugar ele menciona as tentativas feitas para estabelecer repúblicas em Lisboa, Nápoles e Messina naquela época – tentativas seguindo o exemplo holandês, como a Inglaterra fez.

Embora Guizot nunca perca de vista a Revolução Francesa, ele nem chega à simples conclusão de que a transição de uma monarquia absolutista para uma monarquia constitucional só pode ocorrer após lutas violentas e passando por um estágio republicano, e que mesmo assim a antiga dinastia, tendo se tornado inútil, deve abrir caminho para uma linha secundária usurpadora. Guizot fala apenas o senso comum mais trivial sobre a derrubada da monarquia inglesa restaurada. Ele nem cita as causas mais imediatas: o medo por parte dos grandes novos proprietários de terras, que adquiriram propriedade antes da volta do catolicismo e que agora teriam que devolver as terras roubadas da Igreja (procedimento que impactaria sete décimos do total das terras inglesas); a aversão da burguesia comercial e industrial ao catolicismo, que eles julgam de nenhuma forma ser adequado; a indiferença com que os Stuarts, para benefício próprio e dos cortesões, venderam toda a indústria e o comércio da Inglaterra ao governo francês, ou seja, ao único país que oferecia à Inglaterra uma concorrência perigosa e muitas vezes bem-sucedida, etc. Guizot omite os pontos mais importantes, não há mais nada para ele senão a narração altamente inadequada e banal de meros eventos políticos.

Para Guizot, o grande mistério é o conservadorismo da Revolução Inglesa, que ele atribui à uma inteligência superior dos ingleses, enquanto na verdade ele deve ser atribuído à aliança persistente entre a burguesia e uma grande parte dos proprietários de terras. Uma aliança que constituiu a principal diferença entre a Revolução Inglesa e a Revolução Francesa, que destruiu as grandes propriedades rurais com sua política de divisão de terras. A classe inglesa dos grandes latifundiários, aliada à burguesia – que, aliás, já havia se desenvolvido no tempo de Henrique VIII – não compunha oposição, como fizeram os latifundiários feudais franceses em 1789, mas sim estava em completa harmonia com as exigências da burguesia. De fato, suas terras não eram propriedades feudais, mas burguesas. Por um lado, foram capazes de fornecer à burguesia industrial a mão-de-obra necessária à manufatura e, por outro, estavam em posição de desenvolver a agricultura de acordo com os padrões da indústria e do comércio. Assim, sua aliança com a burguesia se deu através dos seus interesses comuns com ela.

Para Guizot, a história inglesa termina com a consolidação da monarquia constitucional. Para ele, tudo o que se segue limita-se a um agradável jogo alternado entre os Tories e os Whigs, isto é, algo como o grande debate entre o próprio Guizot e Thiers. Na realidade, a consolidação da monarquia constitucional é apenas o começo do magnífico desenvolvimento e transformação da sociedade burguesa na Inglaterra. Onde Guizot vê apenas calmaria idílica, os conflitos mais violentos e as revoluções mais penetrantes estão ocorrendo. Sob a monarquia constitucional, a manufatura se expande a um ponto até então desconhecido, para abrir caminho para a indústria pesada, a máquina a vapor e as fábricas colossais. Grupos inteiros da população desaparecem, para serem substituídos por novos, com novas condições de vida e novas exigências.

Uma nova e gigantesca burguesia passa a existir. Enquanto a velha burguesia luta na Revolução Francesa, a nova conquista o mercado mundial. Torna-se tão onipotente que, mesmo antes da Lei da Reforma lhe conferir poder político direto, força seus oponentes a legislar inteiramente em conformidade com seus interesses e suas necessidades. Ela ganha representação direta no parlamento e usa-o para a destruição do remanescente poder dos proprietários de terras. Finalmente, está, no momento presente, envolvida em uma demolição completa dos belos códigos da Constituição Inglesa, que Guizot tanto admira.

Enquanto Guizot elogia os ingleses pelo fato de que as detestáveis excrescências da vida social dos franceses – o republicanismo e o socialismo – não destruíram os alicerces de sua sagrada monarquia, os antagonismos de classe da sociedade inglesa chegaram a um nível não encontrado em nenhum outro lugar. A burguesia, com sua incomparável riqueza e capacidade produtiva, é confrontada por um proletariado que também tem poder e concentração incomparáveis. Finalmente, Guizot assinala que sob a proteção da monarquia constitucional, se desenvolveram muito mais elementos radicais de revoluções sociais do que em todos os outros países do mundo juntos.

Quando os fios do desenvolvimento inglês se juntam em um nó, que Guizot não consegue mais cortar, nem mesmo superficialmente, com meras frases políticas, ele se refugia nas frases religiosas, na intervenção armada de deus. Assim, por exemplo, o espírito santo de repente desce sobre o exército e impede Cromwell de se autoproclamar rei, etc. Ante sua consciência, Guizot procura segurança em Deus; ante ao público profano, em seu estilo.

De fato, não só les rois s’en vont [não só os reis se vão] mas também les capacites de la burguesia s’en vont [as capacidades da burguesia se vão].

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