Silvia Federici: A exploração das mulheres e o desenvolvimento do capitalismo

Por Jodi Dean, via Liberation School, traduzido por Debora Cunha

Calibã e a bruxa, de Sílvia Federici, é uma obra clássica do feminismo anticapitalista. O livro examina o investimento do capitalismo no sexismo e no racismo, mostrando como a consolidação do sistema capitalista dependia da subjugação das mulheres, da escravidão dos negros e indígenas e da exploração das colônias. Federici demonstra que o trabalho não remunerado – especialmente o das mulheres confinadas ao ambiente doméstico e dos trabalhadores escravizados – é um suporte necessário ao trabalho assalariado.

Embora Federici parta de Marx – a principal contribuição de seu livro é o seu repensar da representação de Marx da acumulação primitiva – ela ainda assim rejeita a ideia marxista-leninista de que o capitalismo tem algumas características progressistas. Federici insiste que nunca houve nada de libertador no capitalismo, nem em sua expansão da indústria e da produtividade, nem em sua tecnologia, nem em suas capacidades de centralização e organização. Olhar a história da perspectiva das mulheres, afirma ela, nos diz o porquê. Em vez de estar ligada de alguma forma às dinâmicas desencadeadas pelo capitalismo, a libertação surge da luta e da resistência autônomas a essas dinâmicas. Este artigo interroga essas afirmações, questiona até que ponto Federici se afasta, critica ou constrói o marxismo e considera as implicações políticas que decorrem.

A favor ou contra Marx?

Federici apresenta sua análise como um afastamento crítico de Marx, como uma correção de algumas de suas omissões mais graves. Ela acusa Marx de ignorar o surgimento de uma ordem patriarcal que excluía as mulheres do trabalho assalariado e as subordinava aos homens. Ela sugere que o marxismo falhou em considerar o papel das mulheres na reprodução da força de trabalho e negligenciou a transformação do corpo feminino em “uma máquina para a produção de novos trabalhadores” [1]. E ela argumenta que, se Marx tivesse tomado a perspectiva das mulheres, ele nunca teria associado o capitalismo a um passo em direção à libertação porque ele teria visto que as mulheres nunca alcançaram os avanços em liberdade que os homens fizeram.

A análise de Federici teria sido mais forte se ela reconhecesse que estava estendendo, não se afastando de, o trabalho marxista clássico sobre a “questão da mulher”. Já em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels apresenta o fator determinante da história como a “produção e reprodução da vida imediata” [2]. Ele inicia seu estudo apontando que o materialismo histórico parte da suposição de que a produção dos meios de existência e a produção do ser humano – a organização do trabalho e a organização da família – estabelecem o nível de desenvolvimento de uma sociedade. Atento às interconexões entre reprodução e produção, Engels associa o surgimento da propriedade privada e do valor de troca à “derrota histórica mundial do sexo feminino” [3]. Os homens reivindicam propriedades em rebanhos, armas e instrumentos de trabalho. Eles insistem na herança e autoridade paternas, afirmando o controle sobre o lar. A subordinação resultante das mulheres na família patriarcal e depois na família monogâmica, explica Engels, reduziu-as à servidão: a mulher tornou-se escrava do homem, de sua “luxúria e um mero instrumento para a produção de filhos” [4]. A apresentação de Federici do corpo feminino como uma máquina para a produção de novos trabalhadores é, portanto, um entendimento que Engels teve um século antes.

Engels vê a família monogâmica como uma unidade econômica, o local da primeira divisão do trabalho, da primeira oposição de classe e da primeira opressão de classe. A monogamia está ancorada na propriedade privada, em um sistema em que os homens podem ganhar, possuir e herdar e as mulheres não. A esposa é uma serva; seu trabalho está confinado à família privada. Engels enfatiza que “a família individual moderna é fundada na escravidão doméstica aberta ou oculta da esposa” [5]. Mas nem todas as esposas: as mulheres proletárias, de fato, têm um grau de liberdade que falta às mulheres burguesas. Ganhando salários nas fábricas, as mulheres proletárias podem ser as principais provedoras de renda de suas famílias, eliminando assim qualquer base material para a superioridade masculina e aumentando a independência das mulheres proletárias. Engels não é ingênuo aqui. Ele reconhece plenamente o conflito entre o trabalho dentro do lar e o emprego em trabalho assalariado; não há tempo para uma mulher fazer os dois. Mas, em vez de pedir uma solução privada para o problema, em que casais redistribuam seu trabalho doméstico, Engels a socializa: a libertação das mulheres depende de sua participação na produção pública e da abolição da família monogâmica. Em contraste com Federici, então, Engels vê uma dimensão libertadora para o desenvolvimento capitalista, especialmente da perspectiva das mulheres proletárias. Oportunidades de ganhos também podem ser oportunidades de romper os limites do confinamento da vida familiar e comunitária. Uma diminuição na labuta do trabalho doméstico pode aumentar as possibilidades de liberdade.

A análise de Federici teria sido diferente se ela tivesse levado Engels em consideração? Talvez não. Seu foco está na Idade Média europeia e na transição para o capitalismo, porque ela encontra muito o que admirar no modo de vida dos servos oprimidos, mas relativamente autossuficientes. Ela ignora as relações patriarcais dentro das famílias camponesas e as expectativas restritivas associadas às comunidades agrárias coesas. O próprio Engels tem relativamente pouco a dizer sobre a Idade Média em A origem da família, da propriedade privada e do Estado; ele considera o período principalmente em termos de códigos de cavalheirismo e o ideal de amor romântico e sexual. Sua preocupação é com as conexões entre a família e a propriedade privada, não com o surgimento do capitalismo.

A diferença em suas abordagens não depende da consideração das mulheres, mas da avaliação do feudalismo. Em outras palavras, é uma questão de tempo: em que ponto histórico e por meio de quais processos históricos as mulheres são subjugadas? Engels vê a família pré-burguesa e pré-capitalista como um arranjo econômico e hierárquico de produção e reprodução dependente da propriedade privada. A derrota das mulheres acontece na pré-história; as relações entre produção e reprodução estão dialeticamente interrelacionadas de tal forma que as mudanças ao longo do tempo podem ter dimensões tanto libertadoras quanto opressoras. Concentrando-se no campesinato feudal, Federici apresenta arranjos cooperativos e autossuficientes. A divisão sexual do trabalho é uma fonte de força: as camponesas frequentemente realizavam seu trabalho de fiar e colher juntas. Elas experienciam comunidade e solidariedade, não privação e isolamento. Federici, portanto, apresenta o capitalismo como um desenvolvimento social reacionário que enfraquece a posição das mulheres.

A violenta ascensão do capitalismo

Calibã e a bruxa analisa o fim do feudalismo e a ascensão do capitalismo na Europa. O livro inclui uma discussão de novos entendimentos da vontade, Razão e do corpo que aparecem na filosofia do século 17; numerosas reflexões sobre a continuidade da violência capitalista ao longo dos séculos; e um foco único na queima de bruxas como um instrumento de terror projetado para dividir e subjugar comunidades. Esta história de algumas das mais extremas violências políticas contra as mulheres – especialmente mulheres mais velhas, mulheres forasteiras, mulheres camponesas e mulheres com conhecimento único – acrescentou ao apelo de Calibã e a bruxa diante das leitoras feministas que desejam mais atenção ao lugar das mulheres na história do capitalismo. Embora o relato das bruxas e da queima de bruxas seja central para seu apelo, o núcleo teórico do argumento de Federici é seu relato da ascensão violenta do capitalismo.

Pintando com um pincel largo que confunde vários tempos e lugares, Federici apresenta o capitalismo como o efeito de uma contra-revolução em resposta a séculos de luta antifeudal. Os camponeses se opunham ao recrutamento para o serviço militar, ao aumento da demanda por seu trabalho, à taxação arbitrária e à usurpação das terras comunais de que dependiam para obter alimentos e combustível. Nas cidades, trabalhadores diários e artesãos se rebelaram contra a nobreza e a burguesia mercantil. Movimentos de hereges não apenas se levantaram contra a autoridade da Igreja, mas ofereceram abordagens alternativas para a sexualidade e a reprodução. Por causa da liderança das mulheres nas comunidades heréticas, Federici encontra evidências nessas lutas de um movimento de mulheres de base voltado para a abolição de hierarquias e o estabelecimento de relações sociais igualitárias. A dizimação da população pela Peste Negra aumentou o poder dos trabalhadores e camponeses; os empregadores tiveram que competir por seu trabalho. Aldeias inteiras retiveram aluguel e serviços. Uma das maneiras pelas quais a classe dominante reagiu a essa erupção de poder vindo de baixo foi minando a solidariedade de classe por meio de violentas guerras sexuais. O estupro de mulheres proletárias foi descriminalizado. A prostituição foi institucionalizada em bordéis administrados pelo estado.

Federici enfatiza que a ascensão do capitalismo também foi uma resposta a uma crise de acumulação. Em parte por causa da rebelião incessante do povo e da recusa em trabalhar, a economia feudal tornou-se incapaz de se reproduzir. Em busca de novas fontes de riqueza, a classe dominante europeia voltou-se para a “conquista, escravidão, roubo, assassinato, em resumo, força” [6]. Marx descreve esta virada para a força em sua crítica poderosa da concepção da economia política burguesa da acumulação primitiva na parte oito d’O capital. A riqueza dos primeiros capitalistas não era resultado de trabalho árduo, frugalidade e inteligência, mas de sanções estatais e violência extra-legal que separou os trabalhadores de suas terras, privou-os dos meios de subsistência e os forçou a vender seu trabalho poder para sobreviver.

Essa dimensão europeia da acumulação primitiva foi acompanhada e dependente da extração de ouro e prata das terras colonizadas, do colonialismo, do genocídio e do comércio de escravos africanos. Mesmo que este ponto venha d’O capital, Federici argumenta que a análise de Marx assume a perspectiva do “proletariado industrial assalariado” e da formação do trabalhador independente “‘livre'” [7]. Ela o acusa de negligenciar os impactos da acumulação primitiva na posição social das mulheres e na reprodução da força de trabalho. Se Marx tivesse observado esses impactos, ele teria reconhecido como a acumulação primitiva era “também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora” [8]. Tal reconhecimento teria impedido Marx de associar o capitalismo a qualquer coisa semelhante ao progresso. Ele teria entendido que o capitalismo sempre impôs divisão e formas cada vez mais brutais de escravidão.

Grande parte da redescrição de Federici da acumulação primitiva aprofunda e estende o relato de Marx. Ela destaca os impactos específicos da privatização de terras e “cercamentos” na vida rural. Privados das terras comunais que lhes davam acesso a lenha para combustível, frutas silvestres e ervas, bem como a pequenas caças e pastagens, as dietas dos camponeses diminuíram significativamente. A fome aumentou. A perda das terras comunais também teve efeitos sociais; o espaço social foi eliminado e os laços familiares e comunitários desfeitos. Essa perda foi particularmente difícil para as mulheres que eram menos capazes de pegar a estrada em busca de trabalho (por causa das formas como isso as expunha à violência e por causa de suas responsabilidades como cuidadoras) e cuja falta de acesso a meios de subsistência as tornava dependentes de outros para a sobrevivência. Desvalorizado como improdutivo, o trabalho doméstico em casa foi considerado um dever natural das mulheres. As mulheres também foram excluídas do trabalho não-doméstico no comércio e no artesanato. Tal exclusão e confinamento foram codificados na lei, conforme as mulheres foram impedidas de celebrar contratos, receber salários ou possuir propriedades por conta própria. Em suma, quanto mais a produção era voltada para o mercado, mais se separava do trabalho reprodutivo.

Federici localiza a “derrota histórica” ​​das mulheres nesta nova divisão sexual do trabalho [9]. Ela argumenta que as mulheres proletárias em particular se tornaram um novo bem comum, o substituto para a terra que havia sido expropriada e fechada. O trabalho das mulheres era como um “recurso natural”, disponível gratuitamente e sem necessidade de consentimento ou compensação. Ela associa essa transformação das mulheres em bens comuns com o “patriarcado do salário”. A dependência específica das mulheres proletárias em relação aos maridos surgiu não apenas de sua exclusão do trabalho assalariado, mas do fato de que, mesmo quando eram incluídas no trabalho assalariado, seus maridos tinham direito ao seu salário.

Federici não apresenta esse ponto como uma expansão explícita de Marx. No entanto, Marx faz uma observação relacionada em sua discussão sobre a maquinaria em O capital. Observando como o acréscimo de máquinas deixa o capitalista faminto pela mão-de-obra mais barata de mulheres e crianças, Marx escreve: “Anteriormente, o trabalhador vendia sua própria força de trabalho, da qual ele dispunha como agente livre, formalmente falando. Agora ele vende esposa e filho. Ele se tornou um traficante de escravos”[1