Por Sandra Bloodworth, via Marxist Left Review
“Não há soluções fáceis, mas os socialistas têm que partir da realidade e do que tem a possibilidade de um resultado progressivo, não cair atrás de campanhas cínicas por aqueles em posições de autoridade que são responsáveis pelas condições que reproduzem a violência sexual. Sentimentos de atomização, a noção de que todos nós somos apenas indivíduos sujeitos a forças além de nosso controle é um dos pilares do capitalismo e um sentimento que desmobiliza a classe trabalhadora. Essa atomização empurra os trabalhadores a procurarem uma força que possa oferecer alguma proteção contra ameaças individuais. Como não há atualmente nenhuma força de massa organizada da classe trabalhadora que possa realisticamente prevenir o comportamento antissocial, a preocupação com a violência leva virtualmente inevitavelmente a uma maior identificação com a autoridade.”
Os problemas mais profundos da vida moderna fluem da tentativa do indivíduo em manter a independência e individualidade de sua existência contra os poderes exteriores da sociedade, contra o peso da histórica herança e da cultura externa e da técnica da vida.
Georg Simmel, “The Metropolis of Modern Life” [A Metrópole da Vida Moderna, tradução livre] (1)
O que os [indivíduos] são coincide com sua produção, tanto com o que eles produzem e como eles produzem. Por isso, o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção…[Não partimos do] que os homens dizem, imaginam, concebem, nem dos homens narrados, pensados, imaginados, concebidos, para chegar aos homens na carne; mas do real, os homens ativos e na base de seu real processo de vida nós demonstramos o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e os ecos desse processo de vida.
Marx e Engels, A Ideologia Alemã. (2)
Vinte e cinco anos atrás o slogan “Quebrar o silencio sobre a violência sexual!” ecoou em torno dos campos universitários e das ruas da Austrália. Em 1991 os governantes foram forçados a ao menos aparecerem para levar o problema da violência contra a mulher a sério. O governo Vitoriano desenvolveu uma série de propagandas de TV voltadas a mudar as atitudes da comunidade sobre violência doméstica. Durante os governos da década de 1980, forças policiais e corpos oficiais realizaram um número sem precedentes de inquéritos e conferências sobre violência contra as mulheres, cada vez mais concentrando na violência doméstica. Até mesmo a polícia federal australiana publicou Violência Doméstica: Notas para a Orientação de Oficiais da Polícia! (3) Em 1993 a violência doméstica foi o tópico da discussão na mídia. No dia 3 de junho o The Age publicou duas manchetes, “A Guerra Contra as Mulheres” e “A Epidemia da Violência”. (4)
Nas duas décadas intervindas, ocorreram significativas rupturas no discurso público circundando a questão da violência masculina contra as mulheres. Uma enquete de 2014 do Guardian dos chefes de polícia de cada estado encontrou apoio unânime entre eles por campanhas destinadas a “enfrentar” a violência doméstica e uma vontade de reconhecer as inadequações da ação policial no passado. (5) O então comissário de polícia Vitoriano Ken Lay culpou “a ampla cultura onde atitudes vulgares e violentas às mulheres são comuns.” A maioria deles referiram-se à necessidade de definir sistemas e serviços de suporte para sobreviventes de violência familiar. (6) Nenhum se referiu à onde as mulheres caminham à noite ou as roupas que elas usavam - muito longe do silêncio que antes cercava a violência doméstica ou das velhas suposições de que as mulheres devem ter pedido por ela, ou simplesmente inventado mentiras. Tony Abbott, mais conhecido pelo chauvinismo masculino na sua cara do que pelo apoio aos direitos das mulheres, tornou a violência doméstica uma prioridade urgente para o Conselho dos Governos da Austrália em 2015 e apontou Ken Lay e a australiana do ano Rosie Batty como membros fundadores de um painel consultivo sobre violência contra as mulheres.
Muito foi, portanto, mudado em relação a violência doméstica e a vontade das autoridades em reconhecê-la. Positivo como isso é em muitos aspectos, o foco na violência doméstica criou, no entanto, uma impressão distorcida do fenômeno da violência sexual na sociedade como um todo, que pode formar um impedimento a compreender completamente o problema e como lidar com isso. A evidência de abuso generalizado e variado é incontestável: abuso entre parceiros íntimos LGBTI; abuso de crianças, os idosos, enfermos e doentes mentais nas escolas, igrejas e outras instituições encarregadas de seu cuidado; estupro masculino; violência masculina contra as mulheres nas forças armadas; e a utilização de intimidação e violência sexual em regimes de guerra e tortura. Nesse artigo eu irei argumentar que a violência sexual contra as mulheres só pode ser completamente compreendida no contexto desse abuso sexual muito mais amplo. Ao considerar evidências concretas, recorrerei principalmente à experiência australiana, embora algumas sejam dos EUA, um país com padrões de vida e tradições políticas comparáveis. Embora seja verdade que a violência contra mulheres seja intratável na Austrália e nos EUA, em países onde os direitos das mulheres são ainda menos reconhecidos e os níveis de violência suportados são frequentemente mais extremos. Uma análise comparativa próxima será necessária de modo a explicar diferenças e similaridades entre diferentes culturas e experiências históricas.
Eu argumento nesse artigo que o abuso sexual é profundamente enraizado nas estruturas do capitalismo. O capitalismo é um sistema em que a produção de mercadorias e a criação de riqueza é um processo que domina os seres humanos, não sob nosso controle democrático e subordinado as nossas necessidades. Esse é o contexto social em que a existência e a predominância do abuso sexual precisam ser compreendidas. Nesse contexto eu explico porque hierarquias de autoridade e status são todas situações de abuso, e examinando a sexualidade sob o capitalismo, eu sugiro porque tanto desse abuso é sexual. O capitalismo é além disso um sistema instável de crises, então eu também analiso o impacto nas últimas três décadas de neoliberalismo, a principal forma pela qual a classe capitalista tem procurado lidar com o fim do longo boom do pós-guerra. Isso ajuda a explicar as respostas inadequadas dos governos, e porque eles não fizeram nenhum impacto notável sobre os níveis de violência sexual.
Essa analise aponta para o que os marxistas têm sempre sustentado, que embora seja possível mitigar a violência contra as mulheres (7), ela nunca será erradicada enquanto o capitalismo governar. Uma sociedade sem violência sexual, e uma na qual as mulheres são realmente livres e iguais, apenas será possível quando o capitalismo for destruído em suas raízes e galhos. (8) Esse tipo de programas, campanhas e ações designadas para eliminar completamente a violência sexual irá, portanto, apenas ser efetiva na medida em que elas ajudem a contribuir pela construção de uma necessária consciência de classe, solidariedade e organizações coletivas que serão vitais para conquistar esse fim.
Por que os governos não enfrentam realmente a violência doméstica
Em um primeiro olhar pode parecer que a violência e abuso sexual é entrincheirado por causa do silencio no qual é tradicionalmente envolto, particularmente dentro da igreja e outras instituições. Mas apenas quebrar esse silêncio tem feito bem pouca diferença. As manchetes e artigos da mídia comum ainda proclamam haver uma “epidemia” de violência familiar, e muitos sugerem que isso está ficando pior. (9) É muito difícil obter uma imagem clara da prevalência da violência sexual contra as mulheres. Devido à polícia ter bem sucedidamente convencido as mulheres que as denúncias seriam levadas a sério, as taxas de relatórios estão crescendo. Mas um crescimento de relatos não necessariamente se correlaciona com um crescimento em instâncias atuais de violência ou abuso. Taxas atuais e suas tendências acompanhantes são notoriamente difíceis de mensurar. Algumas estatísticas são utilizadas de formas que não distinguem entre violência sexual e outras formas de violência ou abuso familiar. E pesquisadores têm apontado que mesmo em entrevistas privadas muitas pessoas não admitem o abuso, porque isso as faz sentir vergonha, sofrendo por ideias internalizadas que elas devem de alguma forma ter contribuído por isso. Para outros, isso ainda parece um assunto privado difícil de discutir. Na enquete do Guardian acima, contrariamente a maioria das afirmações e percepções públicas do aumento das taxas de violência, Tasmânia, o Território Norte e Queensland reivindicaram que a agressão de violência familiar tem diminuído no último ano. Mas qualquer que seja a tendência subjacente, há uma evidência muito pequena para sugerir que os níveis de violência de parceiros íntimos têm diminuído significativamente há mais de quatro décadas, a despeito de um número de reformas que tem melhorado a posição das mulheres.
Mulheres casadas não podiam trabalhar no serviço público até 1966. Até a década de 1970 as mulheres não podiam servir em um júri e podiam receber menos que um homem realizando o mesmo trabalho; o divórcio era muito difícil, o cuidado infantil quase inexistente, as mulheres solteiras eram ridicularizadas e o benefício de apoio para mães se tornou disponível apenas em 1973. Claramente as mulheres não eram cidadãos iguais. O primeiro refúgio de mulheres, nomeado Elsie, foi aberto apenas em 1974 no interior de Sydney. Ainda é muito difícil para as mulheres deixarem um homem violento, mas era virtualmente impossível para a maioria apenas três décadas atrás. A participação das mulheres na força de trabalho paga tem crescido constantemente de 48% em 1992 a 59.1% hoje, aumentando a possibilidade de independência econômica. (10) Isso indica que a combinação de propaganda para mudar atitudes masculinas, a conquista de algum grau de igualdade formal para as mulheres e o estabelecimento de serviços básicos para ajudar as mulheres deixarem relações violentas —todas as reformas que marxistas e feministas argumentaram serem necessárias para reduzir a violência sexual —parece ter feito pouca diferença. Isso precisa de alguma explicação.
O radicalismo de fins da década de 1960 e 1970 foi imbuído com otimismo; parecia que a reforma era inevitável e as lutas dos oprimidos estavam empurrando uma porta entreaberta que poderia se abrir, mesmo que fosse preciso um empurrão. Mas a recessão de 1975, os ataques da classe dominante e uma resposta política grosseira dos líderes sindicais do Labor Party [Partido Trabalhista] resultou em um declínio drástico na filiação do sindicato —de cerca de 54% de trabalhadores sindicalizados para 17% hoje. Essa ofensiva política criou uma crescente despolitização e um ambiente de direita. Isso por sua vez estabelece uma base para uma agenda neoliberal da classe dominante impor compreensivelmente uma ideologia de direita, o ataque no direito de se organizar dos trabalhadores e o corte de taxas sobre negócios. Os cortes nos gastos do governo em bem-estar, na saúde e educação colocou muitas famílias e indivíduos sob constante estresse. Esses ataques também realçam como a opressão das mulheres é estruturada dentro do sistema. a disparidade salarial entre homens e mulheres está aumentando, parcialmente explicada pelo fato de que 46.4% das mulheres trabalham apenas meio período, tornando-se quase 70% de todos os trabalhadores de meio período, mas também porque as indústrias onde as mulheres são dominantes tende a pagar menos do que onde os homens estão aglomerados. (11) O resultado tem sido uma redistribuição de riqueza da classe trabalhadora para a classe capitalista por mais de quatro décadas. (12) Mas isso não sacia a sede deles por mais. O orçamento da guerra de classe do governo Abbott de 2014 foi um movimento para avançar esse processo. (13)
Ao mesmo tempo que os governantes falam sobre confrontar a violência doméstica, alinhar oportunidades de foto no White Ribbon Day (N.T.: Dia Internacional para a Eliminação da Violência Doméstica, 25 de novembro, é o dia internacional em que as pessoas usam uma fita branca para mostrar que não toleram a violência contra as mulheres), configurar comissões reais, inquéritos e conferências intergovernamentais, eles estão cortando e “reestruturando” serviços sociais em maneiras que asseguram que a violência familiar irá continuar inabalável. Essa hipocrisia é o resultado de governos procurando cada vez mais promover, de forma oportunista, campanhas contra violência sexual para seus próprios interesses, enquanto ao mesmo tempo implementam políticas neoliberais de cortes e privatização.
Através dessas campanhas o Estado pode ser retratado como o protetor da integridade moral da sociedade, e ação contra violência sexual pode reforçar medidas repressivas como leis mais duras contra perpetradores e mais cadeias para fornecer os resultados. Isso encaixa com mais campanhas gerais de lei e ordem que refletem e reforçam mais terreno da direita na ausência da resistência que era possível na década de 1970. Mas mais do que isso, a interpretação de “preocupação” e apoio para mulheres contra crimes abomináveis aumenta potencialmente a posição da polícia na sociedade. Os governos sentem que pode aumentar sua credibilidade para implementar outras políticas reacionárias. Por causa da tendência à direita dentro do feminismo e com a esquerda seriamente enfraquecida, não há virtualmente nenhuma sobre pressão para implementar políticas que realmente fariam a diferença.
E isso é refletido no catálogo das medidas governamentais que enfraquecem a independência e a habilidade das mulheres saírem de relações abusivas. O governo Abbott alocou um orçamento desprezível de 16.7 milhões de por mais de três anos para a Campanha Nacional de Conscientização para Reduzir a Violência contra as Mulheres e suas Crianças em 2015. Financiamento para serviços legais de sem tetos e aborígenes totalizando 255.4 milhões ridiculamente inadequados, não oferecem segurança para esses dois programas por mais de dois anos. (14) Isso não compensa quase US $300 milhões em cortes nos serviços que afetam as mulheres que escapam da violência familiar.
Um sumário de alguma das consequências dos cortes e negligências torna isso claro. Em toda a Austrália, metade das mulheres procurando lugares para refúgio precisam ser hospedadas temporariamente em hotéis. O tempo esperando por um lugar está crescendo a todo momento porque os refúgios estão preenchidos com mulheres que não conseguem encontrar casas a preços acessíveis e não tem mais nenhum lugar para ir. Cinco anos atrás, as mulheres em Victoria tinham de esperar apenas uma noite em um hotel; agora elas precisam esperar uma média de cinco noites. Pesquisas mostram que 50% das mulheres que precisam ir para um quarto de hotel retornam no dia seguinte à casa em que elas saíram porque é apenas muito difícil. Apenas três em cada 100 locações de dois quartos eram acessíveis para uma mãe solteira que vivia com assistência social no trimestre de dezembro de 2014. Não há programas para mudar essa situação, ainda que embora seja bem conhecido que a lacuna de hospedagem é uma das principais razões de as mulheres não conseguirem deixar uma relação abusiva. No entanto, o governo cortou o financiamento para o acordo de Parceria Nacional para os Sem-Teto de $44 milhões, sem orçamento alocado para ele após 2015. Se a parceira é cancelada, como muitos esperam que seja, ao menos alguns serviços para sem-teto serão forçados a fechar. (15)
O ministro Liberal para as mulheres de NSW (Nova Gales do Sul, em inglês: New South Wales, abreviado como NSW), Pru Goward, proclamou no começo de 2015 que o governo está enfrentando a violência doméstica através das reformas “históricas” It Stops Here (Isso Para Aqui). Um valor miserável de $3.25 milhões por ano foi alocado por apenas três anos! (16) O que é “histórico” é o fato de que em seu orçamento de 2014, o financiamento para refúgios para mulheres e serviços especializados em violência doméstica e para mulheres sem-teto foi cortado e “reestruturado”.
É um labirinto deliberadamente complicado e complexo de mudanças— mas os resultados são claros como cristal. Ao menos 20 refúgios para mulheres em Sydney, alguns operando por mais de 50 anos, e dezenas de outros serviços para sem-teto e mulheres através do Estado, tiveram seu financiamento cortado. Nos últimos dois anos, 80 serviços foram perdidos; mais de 400 prestadores de serviços especialistas em violência doméstica para mulheres e sem-teto foram reduzidos para menos de 70. (17)
O resultado dessa reestruturação é verdadeiramente chocante. Os serviços foram informados que não poderiam licitar, em um processo de licitação a que todos foram submetidos, apenas para os serviços que vinham prestando. Além dos 20 abrigos restantes para mulheres, o restante foi entregue principalmente a instituições de caridade religiosas. Até mesmo o comissário assistente de polícia de NSW, Mark Murdoch, expressou preocupação: “É como OK, estávamos fazendo bom uso daquele abrigo, agora temos que encontrar outro lugar para encaminhar as vítimas.” (18)
Agora as mulheres abusadas procurando por um lugar em um refúgio precisam ficar em linha com todos os sem-teto. Frequentemente em estruturas frágeis, mulheres traumatizadas, os doentes mentais, até mesmo homens violentos são “protegidos” juntos. Em Maitland, Jan McDonald, CEO da Carrie’s Place, que tem sido um refúgio por 35 anos, disse ao Maitland Mercury sobre as consequências de não se permitir oferecer um refúgio apenas para as mulheres. Mulheres e homens da mesma família tiveram que ser acolhidos. Quase imediatamente eles tiveram a situação onde um homem “virou-se e vangloriou-se à mulher ‘Ha-ha, eles estão me ajudando também’.” (19)
Nós poderíamos adicionar muitos outros exemplos. Cortes para qualquer número de serviços que pode não parecer diretamente relevante tem um efeito em cascata. “Reestruturação” (leia-se: cortes) de Cuidados Médicos Locais pelo governo Abbott reduziram-nos de 61 para 31 em toda a Austrália. Muitos tem sido subordinado dentro de “super regiões”, com alguns realocados muitos quilômetros distantes, tornando-os inacessíveis. Muitos dos habitantes locais financiam centros de base que oferecem coisas como “gerenciamento da raiva para homens” e programas para melhorar a compreensão de questões relacionadas à violência sexual e educação sexual para jovens. (20) ao mesmo tempo em que todos esses cortes são impostos em nome do “balanceamento de orçamentos”, tanto o governo liberal quanto o trabalhista tem mantido determinado apoio ao programa de capelania notoriamente de direita em escolas no valor de um quarto de bilhão de dólares - um programa que promove estereótipos sexistas, homofobia e atitudes retrógradas que ajudam a alimentar a violência sexual não apenas contra as mulheres, mas também contra pessoas LGBTI, crianças e muitas outros em circunstancias vulneráveis. (21)
Os governos não podem simplesmente compreender mal as questões. Esse bastião da reação, a Comissão de Produtividade, instou os governos territoriais, estaduais e federais a aumentar o financiamento de serviços legais por $200 milhões, e o relatório da Allen Consulting, comissionado pelo Governo Abbott, descobriram que o financiamento para assistência jurídica já era inadequado para atender aos próprios objetivos do governo. Embora Michael Smith, o CEO do Centro Jurídico de Eastern Victoria, tenha dito a mídia Fairfax: “a violência familiar é cerca de um terço de todo o trabalho que os centros de comunidade jurídica estão realizando por todo o país, então é um pouco vazio falar sobre a violência familiar ser uma prioridade nacional enquanto você corta o financiamento desses serviços.” Quatorze centros em Victoria sozinhos perderam financiamento federal depois de o Governo de Abbott ter cortado $20 milhões dos centros de comunidade jurídica. (22)
Nem é preciso dizer que os cortes de serviços para comunidades indígenas tornam ainda pior uma situação já trágica. As mulheres indígenas têm 31 vezes mais chances de serem vítimas de violência doméstica do que as não indígenas. Os Serviços Jurídicos de Prevenção a Violência Familiar (FVPLS, na sigla em inglês), o único programa desse tipo dedicado às vítimas de violência familiar aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres, sofreu um corte de $3.6 milhões no orçamento de Abbott de 2014. Em dezembro de 2014, quando o FVPLS se tornou a responsabilidade do primeiro-ministro Abbott, foi efetivamente reembolsado e não tem garantia de qualquer financiamento futuro. (23)
As prioridades do sistema não são as necessidades dos oprimidos e não visam melhorar as condições dos trabalhadores ou dar às pessoas mais controle sobre suas vidas. O lucro e o poder da classe dominante são a prioridade. Hoje isso significa mais cortes, menos direitos e menos influência sobre suas vidas para os trabalhadores e os oprimidos. A opressão das mulheres é um elemento-chave no arsenal que sustenta o sistema. E então o abuso sexual das mulheres está intimamente ligada as estruturas, necessidades e prioridades do capitalismo. (24) Nós iremos ver abaixo que as outras manifestações de violência sexual também são resultado dessa lógica.
Evolução da compreensão da agressão sexual
Antes do movimento de mulheres dos anos 1970, a maioria dos teóricos haviam sugerido que o estupro era uma perversão, que estupradores eram doentes mentais, alguns que o comportamento de estupradores era o resultado de uma socialização de uma figura materna forte ou uma figura paterna fraca; todos pintaram um quadro de indivíduos incapazes de controlar seus impulsos sexuais e agressivos, ou com medo de castração, tendências homossexuais e assim por diante. Como Donat e D’Emilio concluíram: “O foco era uma patologia.” (25)
Por mais de quatro décadas, a visão de feministas, marxistas e outros teóricos sobre violência sexual tem mudado continuamente. Os primeiros escritos da segunda onda do feminismo não lidavam com a violência sexual de uma maneira sistemática. (26) Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo - que foi em muitas maneiras um desafio para as ideias predominantes sobre as mulheres - argumentou que virtualmente todas as relações entre homens e mulheres constituíam violência. Ela usa toda a linguagem dos estereótipos de gênero do homem o parceiro forte e enérgico, as mulheres passivas, dominadas, submissas: a mulher é “tomada”, ela é “invadida”, ela “cede” aos avanços sexuais dos homens. (27) Para Beauvoir “a fêmea … é a presa das espécies.” (28)
Susan Brownmillher, uma feminista radical, quebrou o silêncio sobre estupro com seu livro Against Our Will [Contra Nossa Vontade, em tradução livre], publicado em 1975. Ela afirma que até uma discussão sobre estupro a que participou em 1970 ela pensava que “estupro não era uma questão feminista”, e que “o movimento de mulheres não tinha nada em comum com as vítimas de estupro.” (29) Diana Russel escreve que mesmo na década de 1980, feministas nos EUA eram relutantes em tomar a questão do estupro no casamento. (30) Quando ela eventualmente lidou com o assunto, Brownmiller fez um argumento cruelmente reducionista. As mulheres, ela afirmou, são psicologicamente vulneráveis ao ataque sexual, e uma vez que “os homens descobriram que podiam estuprar, eles começaram a fazer isso.” (31) Além de seus sérios erros teóricos e afirmações historicamente imprecisas, ela baseou seus argumentos sobre relatório de polícia, focando no perigo do perigo do estranho. Mas cedo a pesquisa revelou que a maioria dos abusos sexuais das mulheres era perpetrado por homens que elas conheciam - membros da família, amigos e vizinhos - e que a maioria da violência contra mulheres ocorre dentro das paredes do lar familiar. (32) Mesmo assim, a despeito do lento começo e da fraqueza teórica, os debates dentro do movimento de mulheres estabeleceram a visão de que o estupro masculino de mulheres como resultado da nossa cultura sexista. Alguns marxistas foram mais longe, argumentando que isso era resultado das estruturas do capitalismo e da alienação, sendo o sexismo o reflexo ideológico destes. (33)
A Realidade da Violência Sexual
Hoje, inquéritos dentro de igrejas e de cada instituição em que vulneráveis são colocados para cuidado tem revelado o fato frio e duro que o abuso sexual de crianças, tanto de meninas como meninos, e de idosos, deficientes e aqueles que sofrem de doença mental é comum em todos eles. Uma visão mais clara desse abuso sexual mais amplo é essencial para uma compreensão completa do abuso sexual de gênero e desenvolver estratégias para lidar com isso. Enquanto escrevo, a Comissão Real sobre Abuso Sexual Infantil Institucional está ouvindo evidências horríveis de uma rede de pedófilos de padres católicos em Ballarat, Victoria. Jesuítas, Irmãos Cristãos, freiras e outros em posição de autoridade em instituições católicas abusaram e traumatizaram um grande número de crianças em escolas da igreja e paróquias possivelmente desde a década de 1940, durante definitivamente a década de 1960, 1970 e 1980. Um terço da classe de uma testemunha desde então cometeu suicídio, parte de um padrão generalizado que enfatiza o abuso sexual endêmico sofrido por um número desconhecido de meninos e meninas. (34)
Por sua própria admissão, entre 1996 e 2013 a igreja distribuiu $48 milhões em compensação para as vítimas. Dado que o pagamento de compensação médio (baseado em figuras Vitorianas) é cerca de $36,000, isso em efeito é uma admissão de bem mais de mil casos de abuso sexual. Mais de 2,200 aproximaram-se do programa para compensação no meio de 2015, e muitas milhares de novas reivindicações de vítimas homens e mulheres são suscetíveis de resultar da comissão real. (35) Com negações e encobrimentos pela igreja, a defesa de abusadores por gente como o Cardeal George Pell e o bullying das vítimas, quem poderá dizer que acabou? Padrões similares têm sido revelados por inquéritos dentro de instituições como as igrejas Protestantes, escolas Judaicas e o Exército de Salvação. As crianças ainda são removidas por governos de famílias consideradas em risco e jogadas em situações onde, testemunhos em todas as investigações indicam, são muito propensas a sofrer abuso sexual.
Um número de estudos de abuso infantil na Austrália entre 2001 e 2010 foi resumido pelo Instituto de Estudos Familiares australiano (AIFS, na sigla em inglês). Eles se basearam em entrevistas com adultos com idades variando de 18 a 59. Todos esses pesquisadores perguntaram sobre abuso sexual com e sem penetração. Os abusos de meninas sem penetração relatados variaram de 20.6% a 33.6%, dos meninos de 10.5% a 15.9%. Mulheres relataram abusos com penetrações em taxas de 7.9% a 12% e homens de 4% a 7.5%. (36) Outra pesquisa conduzida em 2001 encontrou padrões similares se você comparar mulheres e homens: “Abusos sexuais sem penetração foi o dobro do comum entre mulheres (33.6%) do que homens (15.9%). Aproximadamente 12% das mulheres e 4% dos homens relataram experiências penetrantes não desejadas.” No entanto, os pesquisadores observaram que os homens mais velhos eram mais propensos a relatar abuso do que os jovens, e de mulheres que tiveram relações sexuais antes dos 16 anos, as mais velhas tinham maior probabilidade do que as jovens de dizer que não era consensual. Isso foi interpretado como implicado que as taxas de abuso sexual infantil estavam possivelmente declinando, mas isso é muito provavelmente uma suposição, especialmente porque a descoberta não é substanciada por pesquisas posteriores. (37) Outra fraqueza da pesquisa não mencionada no relatório da AIFS é que o sexo ou relação com o filho dos agressores (membros da família, professores, padres, etc.) não foi listado. Apesar das dificuldades, essas descobertas, mais clínicas do que as evidências anedóticas trazidas à vida pela comissão real, indicam que o abuso sexual de crianças não é insignificante e pode muito bem ser mais prevalente do que os números sugerem.
O website LGBT Same Same relata:
É considerado coloquialmente que a comunidade LGBT sofre violência doméstica em taxas similares a comunidade hetero. Os dados da CON observam que 41% das lésbicas e 28% dos homens atraídos pelo mesmo sexo experimentaram alguma forma de abuso em um relacionamento, combinando isso com 61.8% de homens transgêneros e 42.9% de mulheres intersexuais. (38)
Um estudo Vitoriano de 2008 encontrou que 26% dos entrevistados LGBT tinham experimentado esse abuso. Outra pesquisa indica que os estereótipos de gênero, homofobia e transfobia todos criam pressões que contribuem para níveis de abuso e dificuldade para acabar com ele. Mulheres relataram mais violência de parceiros íntimos do que homens gays. No entanto, pode ser mais difícil para homens admitir homens admitirem o abuso por razões relacionadas ao estereótipo de masculinidade e em particular de homens gays:
Coerção [s]exual entre homens gays têm sido considerada virtualmente oximorônica. Discursos dominantes de masculinade e sexualidade masculina…tornam a possibilidade de que o sexo pode ser indesejado para os homens como uma proposição quase impensável. (39)
Bianca Fileborn, uma pesquisadora da AIFS, comentou que alguns autores
tem argumentado que homofobia e heterossexismo são fatores fundamentais para distinguir entre violência em relações heterossexuais e LGBTQI, tanto em termos de habilidade dos agressores explorarem isso para sua vantagem, quanto em termos de formação de barreiras únicas para reconhecimento e denúncia de violência nas relações LGBTQI.
Ela concluiu:
a teoria feminista sobre violência sexual tem, em geral, excluído a possibilidade da ocorrência de violência sexual dentro de relacionamentos do mesmo sexo (e particularmente relacionamentos lésbicos, que as vezes foi descrito como uma “utopia” para as mulheres) focalizando quase exclusivamente ou conceituando a violência sexual como algo feito por homens a mulheres. Até certo ponto, isso contribuiu, embora não necessariamente de forma intencional, para a oclusão da violência sexual sofrida e/ou perpetrada por indivíduos LGBTQI. (40)
Também podemos dizer que fez com que o estupro masculino fosse uma área seriamente pouco pesquisada. Ficou claro que as taxas de abuso sexual que os homens experimentam são possivelmente consideravelmente mais altas do que se reconhecia anteriormente. Por um lado, sabe-se que o problema que os pesquisadores têm em entrevistas e subnotificação à polícia é ainda mais pronunciado entre os homens. Isso é particularmente um resultado da inadequada compreensão do estupro. Nos debates entre feministas, a palavra “estupro” foi interpretada por quase todas em um sentido muito estrito, como se houvesse estupro, ponto final: penetração da vagina por um pênis. Isso ignora os múltiplos tipos de estupro e especificamente as diferentes circunstâncias do estupro. (41) Como Lynne Segal argumenta contra feministas como Susan Grifin e Brownmiller que sustentou que homens não são estuprados, as mulheres são capazes de abusar sexualmente e estuprar homens, e homens são estuprados por outros homens. (42) Até 2012 o FBI definiu o estupro como um crime cometido apenas contra mulheres. Isso levanta a possibilidade de que o estupro de homens seja mais predominante do que se pensa, ao menos nos EUA essa definição serviu de base para pesquisa. (43) O entusiasmo por esse tópico por grupos de homens reacionários lançou uma sombra que desencorajou pesquisadores de esquerda a admitirem que homens são abusados e que algumas mulheres abusam. No entanto, o estereótipo dominante de gênero do homem agressivo e dominador nos encorajou a pensar nos homens como menos propensos a serem vítimas, ao contrário das mulheres “submissas”. Mesmo muitas pesquisas feministas foram afetadas por essas suposições e qualquer pessoa como as feministas socialistas Lynne Segal e Linda Gordon, que reconheceram que os homens são estuprados e que as mulheres podem ser abusadoras sexuais, foi recebida com hostilidade.
Em um artigo de 2008, Segal menciona 200 peças de pesquisa nas últimas décadas que concluiu que “as mulheres são tão fisicamente agressivas, ou mais agressivas, do que os homens em seus relacionamentos com seus cônjuges ou companheiros.” (44) Vinte anos antes Linda Gordon escreveu que “em certas circunstâncias, as mulheres eram tão propensas quanto os homens a usar violência física contra parceiros ou filhos”. Também impopular foi seu estresse sobre “pobreza e outras formas de privação material e deslocação cultural” como fatores contribuintes na violência doméstica. (45) Isso foi pensado para desviar da compreensão da dominação masculina. E tem acontecido que, por décadas, a maioria dos teóricos assumiu inquestionavelmente que o abuso sexual é um meio de dominação masculina das mulheres. Mas essa definição não nos equipa para entender o papel das mulheres em algo como a tortura na prisão Abu Ghraib, que ocorreu enquanto a General Janis Karpinski estava em comando. Soldados estadunidenses, cerca de metade dos quais são mulheres, participaram em práticas que incluíram, mas também outros métodos sexuais carregados de humilhação, tanto de homens quanto de mulheres. Prisioneiros masculinos foram forçados em poses que podiam ser fotografadas para estimular sexo oral. As humilhações incluíam ser forçado a vestir roupas íntimas femininas ou se masturbar na frente de seus algozes. Lynndie England, cujas poses de riso em meio a essa tortura sexual se tornaram uma imagem central associada à exposição dos crimes de soldados americanos, mais tarde diria no tribunal que as poses e atos eram todos para diversão dos soldados e ela não achava que era errado. O fato de os soldados terem enviado imagens desses ultrajes para a internet dá peso às suas declarações, embora ela mais tarde as tenha retirado em seu novo julgamento. (46)
No entanto, é o caso de pesquisadores como Richard Gelles, muito citado por grupos de homens que argumentam que os incidentes de violência doméstica são razoavelmente iguais entre mulheres e homens, aponta que os aponta que os níveis de danos infligidos pelos homens são significativamente piores, deixando as mulheres com mais sérias feridas. Embora o homicídio não seja um indicador dos níveis de abuso contínuo, as estatísticas de homicídio confirmam o argumento de Gelles. Dos 877 homicídios denunciados em NSW por mais de 10 anos até 2010, 108 foram mulheres assassinadas por seus parceiros íntimos. Ao longo de todos os dez anos, “não houve casos onde uma mulher foi uma abusadora de violência doméstica que matou um homem vítima de violência doméstica.” (47) Mesmo assim, como Segal argumenta contra seus críticos:
O ponto de admitir a existência da agressão de mulheres não contradiz de nenhuma maneira com a realidade cultural de que “masculinidade” é significada em termos de práticas de força física, assertividade e dominância sobre mulheres. (48)
Uma Pesquisa Nacional de Vitimização de Crimes de 2012-13 nos EUA, encontrou que em 40,000 famílias 38% daqueles que vivenciaram algum tipo de abuso sexual foram homens e 46% afirmavam a mulher como perpetradora. Não serve aos interesses das mulheres enterrar os fatos, nem negar aos homens que experimentaram abuso o apoio que eles precisam, simplesmente porque essas descobertas combinam com percepções ou expectativas sobre o abuso. (49) A publicação desses números causou uma tempestade indignada entre aqueles que estão envolvidos em campanhas pelas mulheres violadas por homens. No entanto, as ideias sobre abuso sexual evoluíram ao longo das muitas décadas, à medida que a pesquisa iluminou cantos sombrios da vida das pessoas, desafiando ideias preconcebidas. Quando a acadêmica jurídica feminista Lara Stemple leu o relatório do NCVS, ela ligou para consultar os resultados. Talvez eles tenham cometido um engano? Agora nós temos os resultados de um estudo e pesquisa exaustivos de dois anos por ela e Ilan Meyer, publicado no American Journal of Public Health, que encontrou “vitimização sexual difundida entre homens nos Estados Unidos”. Essa não é a bem conhecida propaganda antifeminista sobre “direitos masculinos”. Pelo contrário, sua pesquisa inovadora é descrita por eles como explicitamente baseada em “princípios feministas que enfatizam equidade, inclusão e abordagens interseccionais; a importância da compreensão de relações de poder; e o imperativo de questionar as premissas de gênero”. Eles argumentam:
A vitimização sexual das mulheres foi ignorada por séculos. Embora continue tolerada e enraizada em muitos lugares do mundo, as analises feministas percorreram um longo caminho para revolucionar o pensamento sobre abuso sexual de mulheres, demonstrando que a vitimização sexual de mulheres está enraizada nas normas de gênero e é digno de intervenção social, jurídica e de saúde pública. Nosso objetivo foi construir sobre este importante legado, chamando atenção para a vitimização sexual masculina, uma área de estudo esquecida.
Damos uma nova olhada em várias descobertas recentes a respeito da vitimização sexual masculina, explorando explicações para os persistentes erros que a cercam.
Eles concluem:
Representações da vitimização sexual reforçam o estereótipo do paradigma da vitimização sexual, compondo perpetradores masculinos e vítimas femininas. Como nós demonstramos, a realidade em relação a vitimização sexual e de gênero é mais complexa. (50)
A violência sexual contra homens em prisões é agora o tema de pesquisa nos EUA, onde um número tão grande de homens está encarcerado, não poderia mais ser ignorado. Em um artigo de Jill Filipovic no The Guardian intitulado “É o EUA o único país onde os homens são mais estuprados que mulheres?” indicando a grandeza da questão vindo à luz com pesquisa preliminar. (51) O que reflete parcialmente os números horrendos em prisões nos EUA. Na Australia a questão do abuso sexual em prisões continua pouco pesquisado. David Heilpern fez a única pesquisa série sobre homens estuprados em prisões que eu vi. Ele encontrou que mais de quarto daqueles que ele entrevistou denunciou terem sido abusados sexualmente. Mais da metade disseram que ter sofrido de ameaça abuso sexual. (52)
Não apenas é revelado agora o predomínio difuso do abuso sexual, mas todas as evidências demonstram que as instituições supostamente respeitáveis, tidas como pilares de uma sociedade decente, tomam medidas extraordinárias, como ameaças, manobras, milhões de dólares em batalhas judiciais ou ofertas de suborno, para silenciar os sobreviventes. Centenas de milhares de pessoas ao longo de dois séculos na Austrália branca olharam de outra forma—isto é, se eles não fossem cúmplices dos crimes. Violência sexual—não apenas entre parceiros íntimos, não apenas contra mulheres ou adultos, mas também contra qualquer grupo vulnerável ou oprimido—é endêmico nessa sociedade.
A violência sexual contra mulheres não está acontecendo isoladamente desses exemplos generalizados. Isso levanta questões fundamentais: por que as pessoas abusam sexualmente daquelas em seu cuidado e por que instituições respeitáveis fecham os olhos? Para responder, nós precisamos nos voltar para a totalidade do sistema capitalista e as consequências de como este é organizado.
Capitalismo, exploração, opressão, alienação
Assim que você nasce eles fazem você se sentir pequeno
Não lhe dando tempo ao invés de tudo
Até que a dor seja tão grande que você não sinta nada
Eles te machucam em casa e eles te batem na escola
Eles te odeiam se você é esperto e eles desprezam um tolo
Até você ficar tão louca que não consiga seguir suas regras
Quando eles te torturaram e ameaçaram por 20 anos estranhos
Então eles esperam que você escolha uma carreira
Quando você realmente não consegue funcionar, você fica tão cheio de medo
Manter você dopado com religião, sexo e TV
E você se acha tão inteligente, sem classes e livre
Mas vocês ainda estão fodendo camponeses, pelo que posso ver
Há uma sala no topo; eles ainda estão dizendo a você
Mas primeiro você deve aprender a sorrir enquanto mata
Se você quiser ser como o povo da colina
John Lennon, Working Class Hero
Para Marx “toda servidão humana é envolvida na relação do trabalhador com a produção, e todas as relações de servidão são não nada mais que modificações e consequências dessa relação.” (53) Simplificando, todos os horrores e opressão que vemos em nosso entorno surge do fato básico da exploração da classe trabalhadora pelo capital e a maneira particular como isso é realizado. As análises que consideram as questões isoladas permanecem explicações parciais, porque elas oferecem apenas uma descrição desse “mundo encantado, pervertido, às avessas” divorciado de suas estruturas fundamentais. (54) Se nós queremos compreender a violência sexual nós precisamos começar com o fato mais básico do capitalismo e desenvolver uma imagem das estruturas e relações sociais, as ideologias e práticas estatais que tornam possível esse abuso generalizado.
A exploração em que o capitalismo se baseia dá origem à opressão da classe trabalhadora. Como essa opressão existe para a vasta maioria, ela é invisível comparada com a intolerância e discriminação experimentada por grupos que são reconhecidos como sofrendo de opressão específica. Mas o governo de uma minoria significa que a classe trabalhadora deve ser excluída sistematicamente de qualquer tomada de decisão real como classe. E como as letras selvagens de John Lennon resumem, está muito mais profundamente enraizado na experiência da classe trabalhadora do que simplesmente na tomada de decisões econômicas ou políticas. Como uma pequena minoria poderia viver explorando uma vasta maioria se aqueles que produzem a riqueza eram autoconfiantes, com um senso de autoestima? Lillian Rubin, uma escritora americana, resumiu a experiência dessa opressão e sugeriu alguma de suas consequências em seu livro Worlds of Pain: Life in the Working-Class Family [Mundos de Dor: a Vida na Família da Classe Trabalhadora, tradução livre]:
As crianças sabem. Elas sabem quando seus professores são desdenhosos sobre suas famílias… Elas sabem que não são os trabalhadores fabris, não são os caminhoneiros, não são os trabalhadores de construção que são os heróis dos programas de televisão que elas assistem. Elas sabem que seus pais não são aqueles que “contam”… E talvez o mais devastador de tudo, elas sabem que seus pais sabem dessas coisas também… Por que mais eles carregariam dentro de si tanta raiva – raiva que ataca irracionalmente em casa, raiva que é deslocada do mundo exterior, onde sua expressão é potencialmente perigosa? (55)
Sob o capitalismo, grupos particulares como as mulheres, povos indígenas, migrantes, pessoas LGBTI, minorias religiosas, crianças, os idosos e incapazes sofrem opressões específicas que dividem trabalhadores em uma miríade de maneiras, sujeitando algumas pessoas a múltiplas opressões.
Em segundo lugar, o fato de que esse é um sistema baseado na produção universal de mercadorias tem profundas implicações para as relações humanas e a maneira como a sociedade é organizada. A massa de produtores é despojada de qualquer controle dos meios de produção; a habilidade dos trabalhadores de trabalhar é tornada a si mesma uma mercadoria, seu preço definido no mercado e pago pela hora. Os trabalhadores trabalham não para produzir o que eles precisam, mas para receber um salário. Esta mesma atividade, que deveria ser criativa e afirmativa, torna-se nada mais que escravidão, produzindo riqueza para aqueles que dominam nossas vidas, e de fato aumentando seu poder sobre nós. Os produtos do labor dos trabalhadores permanecem como objetos alienados, como um poder acima e se opondo a eles. Essa alienação significa que, para o trabalhador, a vida parece ser dominada pelos produtos de seu trabalho. Parece que nossas vidas estão sob o controle de forças estranhas e incontroláveis como “a economia” e “o mercado”. Nas palavras de Marx:
A desvalorização do mundo dos homens cresce na proporção direta do crescimento do valor do mundo das coisas. O trabalho não produz apenas mercadorias; ele também produz a si mesmo e os trabalhadores como uma mercadoria. (56)
O fato de que tudo é trocado, não entre aqueles que fazem as coisas, mas no mercado impessoal, obscurece como o capitalismo funciona. Trabalhar para produzir mercadorias para um mercado impessoal obscurece as conexões sociais entre aqueles que as fabricam e aqueles que irão utilizá-las eventualmente. Os trabalhadores não têm o que dizer sobre o que é produzido e extremamente pouco sobre o que eles vão produzir. Eles geralmente não têm o luxo de decidir que preferem fazer algo útil, como painéis solares, em vez de armas. E então “o caráter social do trabalho os homens aparece para eles como um caráter objetivo estampado nos produtos de seu trabalho… [A] define as relações sociais entre homens…assume, em seus olhos, a forma fantástica de uma relação entre as coisas.” (57) Como Marx argumentou anteriormente no capítulo um d’O Capital, ele conclui perto do final do terceiro volume. “No capital… nós temos a completa mistificação do modo de produção capitalista, a conversão das relações sociais em coisas.” (58)
Isso resulta no afastamento de um ser humano de outro, e o mundo é experimentado como estranho e fragmentado. Como Bertell Ollman diz, “o todo se fragmentou em várias partes, cuja inter-relação com o todo não pode mais ser verificada. Esta é a essência da alienação.” Esta “fragmentação da natureza humana em uma série de partes equivocadas”, (59) e a atual dominação do capital sobre nossas vidas, cria no explorado a sensação de impotência e lança um véu de mistificação sobre as estruturas de exploração. O mercado, mais o fato de que nossa habilidade do labor é uma mercadoria, pago não pela qualidade ou pela utilidade do que nós fazemos, mas por hora, obscurece como o capitalismo funciona. Sendo assim, é difícil rejeitar as ideias dominantes—ideias do senso comum que parecem refletir a experiência, como a de que nós precisamos de patrões para organizar a sociedade, nós somos todos indivíduos, responsáveis pelo que nós fazemos em nossas vidas, as mulheres não são adequadas para desempenhar assuntos de estado, a única relação sexual “natural” é heterossexual e assim por diante. Isso explica por que a massa do povo aceita alguma versão da ideologia da classe dominante.
Marx desenvolveu ainda mais nossa compreensão desse sistema “cujas leis inerentes se impõem apenas como meio de irregularidades aparentemente sem lei.” Quem sabe se o valor social atual, medido pela quantidade de trabalho necessário para sua produção, corresponde atualmente ao seu preço no mercado? Ao contrário de um sistema de troca simples, não é previsível. E então “o preço deixa de expressar totalmente o seu valor. Objetos que não são em si mesmos mercadorias, como a consciência, honra, etc., são capazes de serem oferecidos para venda.” (60) E assim tudo pode se tornar uma mercadoria no capitalismo para ser comprada e vendida, incluindo lazer, a promessa de gratificação sexual real por um preço, até mesmo prestígio e status. O atendimento aos vulneráveis está à venda e tem lucro, assim como a tortura e a perseguição.
Ha aqueles que argumentam que a alienação afeta a todos e dessa forma não poderia explicar algo como o abuso sexual porque nem todo mundo é abusado. É verdade que a alienação não é apenas sobre a experiência individual, é uma condição abrangente e onipresente do capitalismo. É precisamente por isso que é o nosso ponto de partida, não porque todo ato individual ou grupal possa ser lido a partir desse insight de alguma forma reducionista e mecânica. Mas fornece uma explicação básica do porquê tais comportamentos podem ocorrer de qualquer maneira e porque o abuso não é apenas um fenômeno de gênero, mas pode assumir várias formas. O método de Marx é passar do abstrato ao concreto. O concreto, especialmente no capitalismo, onde as estruturas sociais são tão obscurecidas, só pode ser compreendido em uma estrutura teórica. Os fatores de mediação que influenciam como essa alienação é expressada e experimentada precisa ser investigado para entender o abuso sexual. Nós precisamos analisar fatores como o papel dos estereótipos das mulheres como objetos sexuais para serem controlados e utilizados para satisfazer as necessidades dos homens, a socialização de homens para assumir seu direito de dominar outros, a promoção por aqueles em posição de autoridade e influência de homofobia, transfobia, atitudes lascivas em relação ao sexo, a discriminação contra incapazes e assim por diante. O papel da família, instituições que têm influência e controle sobre os vulneráveis, ideologias que justificam algumas formas de abuso, todas devem ser compreendidas em um contexto de uma sociedade particular, suas tradições, níveis de consciência de classe, o estado da luta de classe. Nada é atemporal ou imutável.
György Lukács, em História e Consciência de Classe, fornece uma importante exposição da marxista da alienação. Como parte disso ele explica como as burocracias estatais e instituições hierárquicas nivelam todas as relações humanas e amortecem a empatia humana. O sistema como um todo tem que se basear em cálculos e racionalizações; os trabalhadores se tornam pouco mais do que medições de tempo—os meios cronômetros, os cronômetros completos. Por exemplo, a comissão real sobre o abuso infantil retira qualquer identidade daqueles que relatam seus traumas e coloca os perpetradores e aqueles que esconderam seus crimes no mesmo nível de suas vítimas, referindo-se às “partes interessadas”. A resposta das instituições às acusações de abuso são notáveis pela sua humanidade. Por exemplo, a igreja Católica, que se promove como preocupada com o bem estar espiritual e temporal de seus seguidores, não pode responder de uma maneira humana e cuidadosa a pessoas que são claramente traumatizadas pela brutalidade de seus padres pedófilos. De acordo com Broken Rites, o objetivo de seu programa Towards Healing (Rumo a Cura, tradução livre) não é compensar monetariamente as vítimas, mas “é realmente uma estratégia de negócios, designada para proteger os ativos da igreja e sua imagem corporativa”. (61)
As hierarquias de autoridade exigem ordem e regulamentação, de modo que colocam algumas pessoas no comando de outras, com a responsabilidade de manter a ordem, disciplinando aqueles que não se submetem facilmente a sua autoridade. Mas as relações de mercado, o sistema de produção e competição de mercadorias são instáveis, contraditórias e destruídas por crises. Isso “requer que cada manifestação da vida” precisa exibir o fato de que os indivíduos são dominados pelo capital; que eles “são apenas parte de um mecanismo que pertence ao capitalista”. (62) O “destino dos trabalhadores” é típico da sociedade como um todo em que essa auto objetificação, esta transformação de uma função humana em uma mercadoria revela em toda a sua severidade a função desumanizada e desumanizante da relação de mercadoria.” (63)
No contexto dessa mistura tóxica, nós podemos começar a considerar porque o comportamento violento, controlador e autoritário é possível onde algumas pessoas têm autoridade e controle sobre os vulneráveis e oprimidos. O abuso não é apenas o produto de indivíduos disfuncionais. Pessoas são transformadas em predadoras quando desempenham um papel opressivo na hierarquia. Elas se tornam ferramentas para o papel ideológico que os executores de uma burocracia devem cumprir. Suas ações não são vistas como anti humanas, apenas “necessárias”. Pense no ministro e nos oficiais no departamento de imigração; para eles, refugiados e imigrantes são apenas objetos para fins de controle e propósito políticos. A maioria das instituições, como igrejas ou escolas ou igrejas, são fundadas com base do racionalismo formal. É sobre isso que Foucault está falando em Vigiar e Punir: eles regimentam estritamente a vida, em nome do “melhoramento” das pessoas que estão sujeitas a sua autoridade.
No entanto, existe uma suposição de que as pessoas são máquinas racionais, o que obviamente não são. Consequentemente, pelo menos alguns dos integrantes dessas instituições ficam um tanto ressentidos e às vezes resistem. Os guardas ou instrutores passam a se ressentir de suas acusações e desumanizá-los. Mas também, as pessoas responsáveis por uma hierarquia devem parecer modelos de racionalidade e disciplina iluministas. Isso significa que as pessoas que defendem uma hierarquia são tão reificadas (nos termos de Lukács) quanto aquelas que estão subordinadas a ela—com uma diferença importante sendo que seu sustento e status social estão ligados à sua reificação.
Por que abuso sexual?
Mas por que a intimidação e abuso sexual ocorre tão amplamente?
A alienação existe até certo ponto em todas as sociedades de classe porque os produtores não controlam toda a sua produção. Isso é levado ao extremo no sistema capitalista. Essa alienação é experimentada e expressa de diferentes maneiras. Marx e Engels identificaram a habilidade humana de trabalhar—usando ferramentas, nós mudamos nós mesmos conforme mudamos o mundo ao nosso redor—como o que separa os humanos do mundo animal, ao mesmo tempo em que nós permanecemos parte do mundo natural. a sexualidade também é parte da natureza humana. (64) Como os humanos evoluíram dos macacos, a fabricação de ferramentas mudou esses macacos em animais qualitativamente diferentes. O desenvolvimento de um ser sociável e cooperativo foi acompanhado por uma evolução na forma como se vivenciava o sexo. A sexualidade humana evoluiu de maneiras que envolviam um grau mais alto de prazer do que os macacos dos quais evoluímos, algo que se permite a qualquer momento e não está subordinado às necessidades de procriação. Ver a sexualidade como parte da natureza humana não é dizer que a maneira como humanos experimentam sexo, como nós vivenciamos a sexualidade ou exercitamos nossa capacidade de trabalho, são inextricáveis de alguma alma interior imutável. Cada sociedade constrói a maneira como a sexualidade é compreendida e vivenciada dependendo de como a produção e reprodução é organizada, (65) assim como nossa capacidade para trabalhar. Então, por instancia, o desejo pelo mesmo sexo claramente existiu em toda a história humana, mas foi interpretada e experimentada deformas radicalmente diferentes. Foi apenas com a ascensão do capitalismo, um modo de produção em que a noção de nós mesmos como indivíduos é intrínseca a ideologia dominante, que o conceito do indivíduo “homossexual” emergiu. Porque a sexualidade, como todos os aspectos da experiência humana, é socialmente construída. Como John