Duas estratégias no processo chileno

Por Ruy Mauro Marini, traduzido por Ivan Figueiredo

O texto “Duas estratégias no processo chileno” foi escrito para a edição de julho a setembro de 1974 da revista mexicana Cuadernos Políticos. Tratava-se do número inicial da publicação, de influência marcante entre a esquerda mexicana até ter sua circulação suspensa em 1990, que Marini havia ajudado a fundar e que era qualificada por ele mesmo como verdadeira experiência de trabalho em equipe, com reuniões semanais e espaço fecundo para a manifestação das divergências e debate político.

Na ocasião, o trabalho tinha por destino analisar duas estratégias das quais a esquerda chilena havia lançado mão entre o ascenso de Allende ao governo, em 1970, e o golpe militar de 1973. A tese de Marini, de que a própria ascensão de Allende dava ensejo ao aumento do movimento de massas populares e à radicalização de suas demandas, o que se repetia no polo oposto, isto é, entre burguesia e o grande capital, e que as consequências desse movimento passavam mais pelos erros e acertos estratégicos das forças políticas em cena – sendo central a concepção do papel do Estado na conjuntura sobre a qual se enraizavam – do que do que pela disposição subjetiva do MIR ao desvario. [1] O golpe chileno foi antes a saída articulada pela reação e centralmente pelo grande capital para resolver, fora dos limites da legalidade, considerada o marco sacro dentro do qual o governo da UP se moveria, o acirramento do conflito entre capital e trabalho – a luta de classes.

Acerca da tradução, foi utilizada a versão disponível no acervo digital dos escritos de Ruy Mauro Marini, mantido pela UNAM [2] na internet, além de uma outra, também armazenada pela UNAM, mas no diretório da Cuadernos Políticos. [3] Com o trabalho adiantado, tomei contato com a versão do ensaio publicada em português pelas secretarias de formação política e comunicação do diretório regional do PT-SP, que teve sua segunda edição, de janeiro de 1995, disponibilizada na internet. [4] Não pude cotejar o trabalho com a versão portuguesa.[5] Há duas notas, marcadas com asteriscos, para explicitar dificuldades de tradução. A tradução do texto de Marini não é simples em razão não só da riqueza e variação terminológica utilizada, mas especialmente porque o narrador, como faz questão de notar, incorpora o movimento do sujeito ao processo que se destina a analisar, num debate fundamental para toda a América Latina. [Nota do Tradutor].


Duas estratégias no processo chileno

Refletir sobre os acontecimentos chilenos posteriores a 1970 é uma obrigação para quem se interessa ​​pelo futuro da América Latina. Isso não vale tão somente pela riqueza de ensinamentos que eles contêm, mas também porque, em grande medida, ali se reúnem e condensam muitos aspectos que já haviam sido observados em processos sócio-políticos de outros países latino-americanos. Mais ainda, pelo próprio momento em que se produz e pelas características que assume, o Chile parece fechar uma etapa no desenvolvimento da luta de classes na região e contém em si a promessa de um novo período, superior sob muitos pontos de vista ao que vínhamos vivendo.

Não é nossa intenção analisar exaustivamente o tema, mas indicar algumas questões que nos parecem dignas de consideração. Para tanto, teríamos que começar tentando inserir o período da Unidade Popular (1970-73) no marco do processo político chileno e, sem insistir muito nisso, apontar sua correspondência com as mudanças operadas nas estruturas socioeconômicas do país durante a década anterior.

A crise do sistema

É, com efeito, a esse período que se deverá retomar para explicar as causas do ascenso de Salvador Allende ao governo chileno. As tentativas de interpretação que recorrem, para tanto, à solidez das instituições democrático-burguesas no Chile ou ao caráter profissional e apolítico de suas forças armadas foram desmentidas pela própria mesma, e não vale a pena se ocupar aqui com o tema. O que deve ser apontado é que tais argumentos já eram fracos antes mesmo que a história os jogasse por terra. Pois o mais particular na vitória da Unidade Popular, em setembro de 1970, foi o fato de que, mantendo quase o mesmo percentual obtido nas eleições anteriores (cerca de um terço do eleitorado) não se tenha dado, como em ocasiões anteriores, a união das forças que se lhe opunham, o que permitiu que a contenda eleitoral se realizasse em três frentes, favorecendo assim aos partidários de Allende.

Tentou-se explicar isso com base em um erro de cálculo da burguesia, e é óbvio que tal erro existiu: se estivesse certa de que perderia as eleições, seus principais partidos (nacional e democrata-cristão) não teriam se apresentado divididos nas eleições. Mas o verdadeiro problema, para a análise sócio-política, não reside na constatação desse erro de cálculo, mas em saber por quê tal erro ocorreu. Não havia nada no panorama político dos anos anteriores que o justificasse; pelo contrário, o ascenso das lutas de massas na cidade e no campo, a crescente impopularidade do presidente Eduardo Frei entre as camadas populares, os problemas internos da democracia-cristã (que levaram, no ano anterior à eleição, à fração que tomou o nome de MAPU), a agitação nas forças armadas mesmas, expressa pela revolta do regimento Tacna em 1969, por um lado, e na imensa distância que separava a direita (representada pelo PN e seu candidato, Arturo Alessandri) em relação à DC e ao bloco de esquerda, em termos de apoio popular, pelo outro, tudo isso deveria ter levado a burguesia à previsão inversa.

Não seria, então, que o erro de cálculo da burguesia era uma auto-ilusão necessária criada pela classe para justificar e encobrir fatores objetivos que a dividiam internamente? Havia no Chile contradições inter-burguesas e entre a burguesia e a pequena burguesia que levaram inevitavelmente essas classes a buscar soluções políticas irreconciliáveis ​​e, uma vez posta a questão nestes termos, elas não teriam que forjar para si mesmas a ideia de que essa oposição insuperável não afetaria seus interesses de classe?

Uma breve análise da situação da burguesia, assim como da pequena burguesia proprietária (pequenos industriais e comerciantes, etc.) tende a indicar que era assim. Do ponto de vista industrial, a década de 1960 é considerada como um período de estagnação no Chile (para não falar da agricultura, cuja regressão era um fato há várias décadas). Um exame mais detalhado do problema nos revela, no entanto, que não havia tal estagnação, mas sim uma mudança estrutural, uma mudança de eixo da acumulação de capital. Tal deslocamento se fez das indústrias tradicionais (têxteis, vestuário, calçado, etc.), onde predominavam a média e a pequena burguesia, para as chamadas indústrias dinâmicas, dedicadas à produção de bens mais sofisticados e suntuários, nas condições de vida imperantes no Chile (tais como a indústria de automóveis, de aparelhos eletrodomésticos, etc.), onde o predomínio cabia ao grande capital nacional e estrangeiro.[6]

Desde 1967, a política do governo Frei havia se orientado, em relação ao setor industrial, para dar ao grande capital as facilidades exigidas para o seu desenvolvimento, em termos de financiamento público e crédito ao consumidor, investimentos em infraestrutura e em indústrias de base por parte do Estado, etc., assim como para a adoção de uma política regressiva de distribuição de renda, capaz de promover uma adaptação dos padrões de consumo em favor da produção suntuária. Notemos que às medidas relativas à distribuição regressiva de renda respondeu em boa medida o aumento dos movimentos de protesto de massa daquele ano. Simultaneamente, o governo se lançava à conquista de uma zona própria de mercados estrangeiros para esses produtos, através da criação do Pacto Andino, do qual o Chile foi o principal promotor.

Mas as contradições inter-burguesas não se desenharam tão somente no terreno da indústria. Alcançaram também o campo, onde a política do governo democrata-cristão tinha um duplo propósito. Por um lado, atender às pressões da base de seu próprio partido, sensível à proposição de que o agravamento da luta de classes e a propaganda da esquerda haviam generalizado sobre a necessidade de uma reforma agrária. Essa política era, além disso, compatível com as premissas norte-americanas para a região, estipuladas na reunião de Punta del Este de 1961, na qual a Aliança para o Progresso foi criada (da qual o governo de Frei era líder), as quais tinham como como objetivo desenvolver no campo uma classe média capaz de lidar com a radicalização do movimento campesino em certas áreas da América Latina. Por outro lado, a reforma agrária democrata-cristã pretendia impulsionar um maior desenvolvimento agrícola, destinado a aliviar o peso das importações de alimentos no balanço de pagamentos e, simultaneamente, baratear em termos reais a mão de obra, toda vez que a organização sindical chilena dificultasse o rebaixamento dos salários mediante o uso puro e simples da força. Este segundo aspecto levava a ampliar a penetração do capitalismo no campo, estabelecendo um certo nível de conflito (muito minorado, é verdade, pelas medidas paliativas estabelecidas pela lei) com a classe de proprietários de terra, ou seja, com os grandes latifundiários que, em sua maioria, eram rentistas e absenteístas. Havia, finalmente, um terceiro aspecto na política freísta, que era a captação de bases campesinas para o partido democrata-cristão. O resultado disso foi o de que foi Eduardo Frei quem deu o sinal de partida para a sindicalização rural em grande escala, a qual se generalizara depois com Allende.[7] Paralelamente, os amplos setores de trabalhadores excluídos dos benefícios da reforma agrária iniciariam um processo de luta sob formas pouco ortodoxas, particularmente a de ocupar terras, que também alcançariam seu ponto alto no período da Unidade Popular.[8]

Este despertar do movimento campesino foi acompanhado, como mencionamos de passagem, por um aumento do movimento das massas urbanas. Destacavam-se aí a classe operária, cujos índices de greves escalavam em flecha, com a particularidade de que aumentavam em maior proporção as greves chamadas ilegais, promovidas sobretudo por trabalhadores não sindicalizados pertencentes à média e pequena indústria; pobladores*, que iniciam sua luta estimulados pela própria democracia-cristã e, em seguida, pelos partidos tradicionais de esquerda, interessados ​​no caudal de votos que poderiam aportar, para ganhar, ao penetrar ali o Movimiento de Izquierda Revolucionaria, níveis inesperados de radicalização e formas de luta de alta combatividade; e, finalmente, a própria pequena burguesia assalariada, principalmente o funcionalismo, como os funcionários do governo, os trabalhadores dos serviços nacionais de saúde e até os juízes (em 1970 ocorreu no Chile o espetáculo insólito de uma greve de magistrados).

Tudo isso estava indicando uma profunda crise no sistema de dominação burguês, que se estabelecera no Chile no fim dos anos 30 e sofrera algumas adaptações nas décadas subsequentes, particularmente na dos 50. Este sistema combinava os interesses da burguesia industrial e da velha classe latifundiária e financeira sobre a base de uma participação mútua nos benefícios do enclave do cobre, controlado pelo capital norte-americano, destinando ainda parte do excedente extraído de lá extraído à pequena burguesia urbana. Esta havia se constituído, no marco do sistema, em uma classe de apoio ativo ao mesmo, destacando de seu seio uma fração política, que se encarregava dos negócios do Estado em benefício das diferentes camadas e frações de classe beneficiárias do mesmo.[9] Ao mesmo tempo, se estabeleciam formas institucionalizadas de relações com os setores mais fortes do movimento operário (cerca de 30% da classe se encontrava sindicalizado), entre as quais se incluíam garantias aos seus representantes políticos, representados principalmente pelos partidos tradicionais de esquerda: comunista e socialista.

É verdade que esse sistema havia atravessado anteriormente uma fase cr